Durante anos, o compliance foi tratado como um departamento paralelo, isolado das decisões reais do negócio. Embora muitas empresas tenham adotado políticas formais, a aplicação prática, aquela que previne riscos, molda culturas e protege reputações, ainda está distante da maioria das organizações brasileiras.
Essa negligência não é apenas um sinal de imaturidade institucional. Ela representa um risco sistêmico para a sustentabilidade dos negócios, principalmente em mercados cada vez mais fiscalizados por investidores, consumidores e órgãos reguladores. A pergunta que precisa ser feita é simples, mas profunda: por que o compliance ainda é ignorado onde mais importa, na prática cotidiana da liderança e da cultura corporativa?
Todo programa de integridade nasce da premissa de que a ética deve ser um valor institucional, e não apenas um princípio aspiracional. No entanto, o que se vê na prática é uma disparidade gritante entre o que se diz e o que se faz.
Enquanto o código de conduta está disponível no site institucional, executivos seguem tomando decisões que ignoram totalmente os princípios ali descritos. Essa incoerência mata o compliance na origem. Se a liderança não dá o exemplo, não há treinamento, política ou canal de denúncia que funcione.
Após a Operação Trapaça, deflagrada pela Polícia Federal em 2018, ficou evidente que o problema de compliance da BRF não era falta de estrutura. A empresa contava com um programa formal, manuais bem redigidos e canais de denúncia. O que faltava? Comprometimento real da liderança.
Diretores foram acusados de pressionar subordinados a adulterar resultados de testes laboratoriais em produtos alimentícios. O resultado foi uma crise reputacional severa, prejuízos financeiros e a necessidade de uma reconstrução completa da governança.
Compliance não sobrevive à liderança incoerente. Quando o exemplo vem de cima, o comprometimento desce em cascata. Quando não vem, o cinismo se instala.
Empresas que crescem com base em resultados a qualquer custo inevitavelmente criam brechas éticas em seus processos. Esse é o tipo de cultura onde “quem entrega, está protegido”, mesmo que burle regras, cometa abusos ou force situações moralmente questionáveis.
A startup indiana Oyo, com atuação relevante no Brasil, foi um dos grandes exemplos do que acontece quando metas superam princípios. Em 2020, ex-funcionários denunciaram a manipulação deliberada de dados financeiros e falsificação de relatórios para atrair investidores.
Internamente, o compliance era tratado como uma formalidade. Não havia mecanismos eficazes de controle, nem apoio institucional para denúncias. A cultura era orientada exclusivamente à performance, mesmo que isso implicasse transgressões graves.
Empresas que não cultivam uma cultura ética desde cedo colhem consequências graves quando escalam.
Muitos programas de compliance são construídos com foco excessivo no formalismo legal, distantes das operações e das dinâmicas de negócios. O resultado é um programa “de fachada”, que não gera valor real nem protege a organização de forma eficiente.
Depois da Lava Jato, a Petrobras se viu forçada a reestruturar profundamente seu programa de integridade. O novo modelo passou a integrar compliance à gestão de riscos, planejamento estratégico e tomada de decisão em conselhos.
A empresa implementou controles mais rígidos, treinamentos sistemáticos para executivos e conselheiros, além de incluir KPIs de integridade como parte da avaliação de performance de lideranças.
O resultado foi visível: a companhia recuperou parte da confiança de investidores internacionais, reduziu o passivo de sanções e passou a figurar como referência em boas práticas de governança no setor público-privado brasileiro.
Compliance eficaz é aquele que participa da estratégia, antecipa riscos e informa decisões.
Não se pode gerenciar o que não se mede. Sem métricas claras, os esforços de compliance se tornam subjetivos, difíceis de justificar e, na prática, irrelevantes na hora de decidir orçamentos ou promover executivos.
O Itaú Unibanco desenvolveu um painel detalhado com indicadores de integridade, revisado trimestralmente por um comitê executivo. Entre os KPIs acompanhados estão: percentual de colaboradores treinados, número de denúncias apuradas, tempo médio de resposta a incidentes e níveis de percepção de integridade coletados em pesquisas internas.
A Natura, por sua vez, mede o impacto de suas ações éticas por meio de uma pesquisa anual de cultura organizacional, além de integrar temas de integridade à sua avaliação de desempenho.
Esses dados não servem apenas para auditorias. Eles informam decisões, orientam estratégias e fortalecem a confiança dos stakeholders.
Sem indicadores, o compliance perde força política e estratégica dentro da empresa.
Um dos maiores erros no processo de implementação de programas de compliance é acreditar que basta um e-learning obrigatório e um vídeo institucional com linguagem jurídica para resolver o problema. Não resolve. Pelo contrário: isso desgasta o tema, afasta o público e transforma o conteúdo em ruído.
A Gerdau adotou uma abordagem inovadora para engajar seus mais de 30 mil colaboradores em temas de integridade. Em vez de materiais frios, a empresa criou campanhas internas com linguagem informal, exemplos reais de dilemas enfrentados na operação e trilhas de aprendizagem adaptadas para diferentes níveis hierárquicos.
O resultado foi uma melhoria significativa no entendimento e retenção dos conteúdos, além de um salto na confiança nos canais de denúncia.
Compliance precisa falar a língua da empresa. Se o conteúdo não gera identificação, não gera transformação.
Empresas que ainda tratam compliance como um departamento acessório, distante da realidade do negócio, estão colocando em risco sua reputação, seus ativos e sua capacidade de crescer de forma sustentável.
Compliance é, antes de tudo, uma decisão de liderança. Exige investimento, integração com áreas críticas e disposição para romper com culturas permissivas que ainda prevalecem em muitos setores.
Num cenário global onde a confiança se tornou um diferencial competitivo, a integridade precisa deixar de ser discurso e se tornar prática. Quem entender isso primeiro estará mais preparado para resistir às crises, e, sobretudo, para evitá-las.